Uma pesquisa conduzida pelo Instituto de Geociências da Universidade Estadual Paulista (Unesp) de Rio Claro percebeu que a reposição de águas do Aquífero Guarani está abaixo do necessário para garantir a manutenção da quantidade disponível no reservatório, que se estende por áreas do Sul e Sudeste do país, além de Paraguai, Uruguai e Argentina.
O artigo, titulado “How much rainwater contributes to a spring discharge in the Guarani Aquifer System: insights from stable isotopes and a mass balance model” (Quanta água da chuva contribui para a vazão de uma nascente no Sistema Aquífero Guarani: insights de isótopos estáveis e um modelo de balanço de massa) é de autoria dos pesquisadores Marcelo Donadelli Sacchi, Rodrigo Lilla Manzione e Didier Gastmans e foi publicado pela revista científica “Isotopes in Environmental and Health Studies”.
Em entrevista à Agência Brasil, o pesquisador e um dos autores, Didier Gastmans, do Centro de Estudos Ambientais da Unesp Rio Claro, explicou que a pesquisa buscou entender a importância da chuva na entrada de águas novas no aquífero, nas áreas de afloramento (superfície), e que foi possível confirmar esse papel.
Ele acompanha o tema desde 2002, em seu doutorado, e todas as pesquisas desde então apontam que os efeitos de superexploração do reservatório são constantes, contínuos e tem piorado com a mudança de distribuição das chuvas na área de afloramento, que alimenta o aquífero. O problema causa preocupação em áreas de grande produção agrícola e população, como Ribeirão Preto, no norte paulista, onde os primeiros efeitos são sentidos desde a década de 1990. “Agora começou a aumentar muito o número de poços e isso começa a dar sinais em diversas regiões do interior”, disse Gastmans.
O geólogo afirmou que os indícios de superexploração estão claros no monitoramento dos poços e do nível dos reservatórios, atingindo aqueles próximos das regiões de afloramento, que têm níveis de dois a três metros mais baixos, em média, mas também os grandes poços de exploração para indústria e agronegócio, nos quais o rebaixamento atinge médias de 60 a 70 metros em dez anos.
Nessa dinâmica "a água tem uma determinada profundidade no poço e vai baixando, o que demanda poços mais profundos e bombas mais potentes. Na porção oeste (do estado de São Paulo) a gente fala de grandes produtores e sistemas para abastecimento público. Pequenos produtores já sentem esse impacto em algumas regiões próximas da área de afloramento", esclareceu.
Esse rebaixamento dos níveis chega, em determinados pontos, a até 100 metros, considerável até para as dimensões do Aquífero, que tem níveis com 450 metros de espessura do reservatório, chegando a até 1 quilômetro de profundidade.
A maior parte do consumo do Guarani é para o abastecimento urbano, e ao menos 80% dela se concentram no estado de São Paulo.
Um dos fatores que preocupa no curto prazo é que a chuva nas regiões de superfície, a partir das quais há recarga no aquífero, são muito concentradas, situação na qual apenas uma pequena parcela de chuva infiltra para o subsolo e ocorre um escoamento maior e infiltra menos. Também há impacto do aumento da evaporação nas áreas de superfície, causado pelo aumento da média de temperatura nas regiões.
Monitoramento em tempo real
Gastmans criticou a falta de um conjunto claro de ações por parte dos órgãos públicos, afirmando que a primeira ação necessária é conhecer os usuários. "É necessária a implantação de um sistema de monitoramento em tempo quase real, para conhecer e dimensionar os atendimentos e as políticas de curto e médio prazo".
O segundo é consorciar água subterrânea e água superficial, para usar de maneira integrada de acordo com a disponibilidade sazonal. "Também se faz necessário pensar no planejamento futuro: sempre se fala em desenvolvimento, mas os gestores parecem ignorar que não existe desenvolvimento plenamente sustentável, pois todo desenvolvimento tem um impacto e essas pessoas precisam começar a se antecipar aos problemas".
O pesquisador da Unesp defendeu ainda a necessidade de pensar no uso de águas de melhor qualidade para abastecimento público e de águas de menor qualidade para outros usos, como irrigação de áreas extensas do setor sucroalcooleiro e de cítricos e uso industrial.
A Agência de Águas do Estado de São Paulo (SP Águas) informou que monitora todos os estudos relacionados à recarga do Aquífero Guarani e dos demais corpos d'água do estado. Segundo o órgão "a gestão do aquífero é realizada de maneira integrada com outros recursos hídricos, visando garantir o equilíbrio entre as demandas de uso e a preservação ambiental".
A maior parte da captação de água no estado de São Paulo se concentra em fontes superficiais (rios e lagos), sendo a captação em poços profundos, que acessam o Aquífero Guarani, a menor parcela do total dos recursos hídricos. “Toda captação de água no estado está sujeita à outorga, concedida somente após criteriosa análise técnica”.
Origem das águas
A pesquisa conduzida pela Unesp, com o apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), usou o monitoramento de isótopos estáveis de hidrogênio e oxigênio como marcadores para identificar a origem das águas que compõem o reservatório, o que permitiu perceber as áreas de superfície que colaboram para a manutenção dos níveis do Aquífero Guarani.
Também usaram um processo de datação com isótopos dos gases ‘criptônio’ e ‘hélio’ para datar a água de alguns poços, o que permitiu detectar idades variando de 2.600 anos, em Pederneiras, até 127 mil anos em Bebedouro, 230 mil anos em Ribeirão Preto e 720 mil anos no Paraná.
Fontes de água potável
O estudo monitorou as nascentes, os rios, os poços e a chuva ao longo de oito anos, no período 2013/2021, e mediu a contribuição das águas pluviais e subterrâneas para a manutenção de nascentes na região de Brotas, na porção central do Estado de São Paulo, localizada na sub-bacia do Alto Jacaré-Pepira, onde o abastecimento urbano, a agricultura e o turismo intensivo dependem fortemente dos recursos hídricos.
Os aquíferos são as maiores fontes de água potável do mundo. E o Guarani é o maior aquífero transfronteiriço – isto é, que se estende pelo subsolo de vários países. Sua área total, de aproximadamente 1 milhão de quilômetros quadrados, abrange trechos no Brasil, no Paraguai, no Uruguai e na Argentina. Dois terços estão no território nacional, alcançando os Estados de Goiás, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, São Paulo, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul.
Nas partes centrais da Bacia Sedimentar do Paraná, o Aquífero Guarani pode atingir espessuras de até 450 metros e situar-se a profundidades superiores a 1.000 metros. Ainda que a quantidade de água doce seja descomunal – com um volume total armazenado de 30 mil quilômetros cúbicos e um volume disponível de 2 mil km, esse recurso natural também é finito, sujeito a esgotamento e contaminação por poluentes.
O Estado de São Paulo consome cerca de 80% da água extraída do Aquífero Guarani no país. Dados de 2010 indicaram um consumo ainda maior, superior a 95%. Poços para abastecimento urbano, em primeiro lugar, e para irrigação agrícola, em segundo, são os principais fatores de redução do conteúdo líquido – o que, no contexto da atual emergência climática, com períodos de seca severa, é algo a ser considerado com muita atenção.
A homogeneidade das águas subterrâneas indica que o aquífero não é afetado diretamente por efeitos de sazonalidade, sendo essencialmente composto por uma fonte majoritária de água subterrânea com contribuições bem menores da água da chuva. Por outro lado, o rebaixamento do poço durante o período de monitoramento sugere que tenha ocorrido uma redução das taxas de recarga, devido à diminuição dos volumes totais de precipitação e ao aumento da evapotranspiração. Em outras palavras, o montante de água que entra no aquífero por meio da recarga não está sendo suficiente para repor o montante de água que sai do reservatório.
O Aquífero Guarani abastece cerca de 90 milhões de pessoas. Durante a estação seca, sua contribuição chega a suprir 90% da descarga das nascentes. A exploração excessiva, combinada com secas prolongadas no contexto da emergência climática, pode comprometer sua capacidade de sustentar o fluxo dos rios e nascentes, exacerbando crises hídricas como as que ocorreram entre 2014 e 2015 e, novamente, entre 2017 e 2021, no Estado de São Paulo.
Com informações, Guilherme Jeronymo, Agência Brasil; José Tadeu Arantes, Agência Fapesp.
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